!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> nese-nese: Ver e gozar

6.10.2004

Ver e gozar

Vi um documentário sobre um poeta surrealista, Mário Cesariny, em ambiente casualmente surrealista.
Os preparativos são executados por dois desentendidos nos aparelhos de vídeo e som.
Duas manequins em pose humana e roupas expostas em esqueletos de manequins.
O écran trapézio e a porta real na parede onde a imagem nos abria a vida e a palavra do poeta.
O dálmata com a cauda a abanar farejando alguns cantos da sala anunciava uma dona que não enxerguei.
Eu a escrever…
A cena do “Entra… entra”, palavras do Cesariny, agora filmado num bar, para um tipo que parece mesmo entrar pela porta da parede e não pela porta filmada. A realidade?
Eu a escrever…. Quase debaixo da saia de um esqueleto de manequim, em cima de um palco oposto ao local da parede onde a imagem flui. Pessoas entram e saem. “Continuação…” diz um tipo que poderia ter saído do écran ou por ele sair.
O poeta vai falando, falalando: «Isto é um bocadinho estúpido, mas é da sabedoria antiga…. ah, ah…»; «A minha alma gémea teria que ser diferente de mim».
O que diz Cesariny? Não sei ao certo. A frase pode terminar em qualquer palavra porque o sentido será sempre buscado. Acho que é isto o surrealismo: terminar e começar a qualquer momento.
«Passei mal com a ditadura…». Hoje, a palavra final desta frase deveria ser “dentadura” porque o écran trapézio e a porta da parede evidenciam disformemente o queixo do poeta e de sua irmã.
«Odeio aquele homem. A minha mãe coitadinha….» profere a irmã.
Uma miúda deu-me uma “Sagres” que estavam em promoção. Não a acabei.
Cesariny fecha a janela. Quase demorou duas horas.