!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> nese-nese: O Problema Epistemológico Do Futebol

11.19.2004

O Problema Epistemológico Do Futebol

Há um problema epistemológico fundamental relacionado com o futebol. A memória não me ajuda a identificá-la, mas, houve uma pessoa que terá dito: «O futebol é uma ciência!» De facto, no seu seio, existem, entre outros técnicos, ilustres professores oriundos de uma carreira académica superior. Para aí chegarem, a formação científica sobre a compleição atlética, as técnicas, o corte, a finta, o chute, a defesa e o golo foi indispensável e parece atestar que o futebol tem uma teoria, um objecto e uma prática. Confesso que nunca mergulhei fundo nesta ciência. Apenas me limito a ver futebol e dele ter notícias. Estas comunicam-me, frequentemente, que uma das máximas mais repetidas e corroboradas pela experiência futebolística, já centenária, é: «Não há dois jogos iguais.» O problema instala-se: como é possível construir uma ciência com base em fenómenos irrepetíveis? Ainda poderão objectar os possíveis guardiões deste hipotético saber científico que a diferença é superficial e não estrutural, há, portanto, legitimidade para erguer um saber científico cujo objecto é o futebol. Admito haver aí um argumento possível, simplesmente, uma outra máxima repetida e corroborada pela experiência é: «Em futebol o que ontem é verdade, amanhã pode não o ser». Concluo, então, uma coisa bem simples: Em futebol (e, talvez, não só), quando muito, só há explicações depois dos factos, neste caso, depois dos jogos. Em todo o caso, quem resolver positivamente o problema epistemológico fundamental do futebol, não só consegue que professores treinadores, treinadores não-professores e jogadores planeiem as técnicas a usar nos jogos com o resultado previamente determinado, como dá uma enorme segurança aos jornalistas, comentadores e críticos sobre o que dizer num dado momento e, além disto, a tão falada e desejada pacificação do futebol, por certo, seria conseguida. Vejamos um ensaio de uma entrevista a um treinador antes do início de um jogo no suposto de que o futebol é uma ciência:
«Entrevistador - Senhor Treinador qual é a Configuração Táctica que decidiu utilizar?
Treinador - Aquela que me garante a vitória por duas bolas de diferença no mínimo ...
Entrevistador - A chamada Configuração Táctica Ofensiva!
Treinador - Sim. Tirou-me as palavras da boca. Eu utilizo, todavia, em conjunto, uma derivação. É o chamado Resguardo Defensivo. Lembremo-nos do grande princípio teórico: Todas as Configurações Tácticas Ofensivas são Retro-sustentadas!
Entrevistador - É claro que pensou na Configuração Táctica que o adversário irá utilizar?
Treinador - Outra coisa não seria de esperar. Se a nossa equipa sair com a bola usaremos a táctica referida. Quando for a equipa adversária a fazê-lo, durante os dez minutos seguintes utilizaremos o chamado Resguardo Defensivo que é uma excelente técnica para a indução de erro na equipa adversária e, por conseguinte, para a recuperação do esférico por parte da nossa equipa.
Entrevistador - O treinador da equipa adversária informou os jornalistas que irá utilizar o Maciço Defensivo Empatativo que garante a igualdade de resultado. Quer comentar?
Treinador - Sim, quero. É bem sabido que a Configuração Táctica Ofensiva reunida ao Resguardo Defensivo tem uma hipervalência sobre o Maciço Defensivo Empatativo e garante sempre uma vitória de, pelo menos, dois golos de diferença! É dos livros! Está cientificamente comprovado!»
Os comentadores teriam a segurança de um resultado cientifica e previamente determinado o que lhes permitiria comentar, quiçá, do seguinte modo:
«Duas equipas no terreno, duas Configurações Tácticas: A Configuração Táctica Ofensiva reunida ao Resguardo Defensivo e o Maciço Defensivo Empatativo; Duas certezas: A hipervalência da primeira configuração táctica sobre a segunda e o resultado final: vitória por dois golos pelo menos para a equipa que vai usar a primeira configuração táctica. Imponderáveis? Sim, é claro! Mesmo na era científica do futebol admite-se a possibilidade do erro. A questão é saber quem o irá cometer. O árbitro? Os jogadores? Os treinadores?»
Mais adiante em pleno decurso do jogo:
«[...] A equipa ofensiva dirige-se à baliza adversária. K. remete a bola para Y., Y. para S., o golo é previsível, S. procede a um cruzamento perpendicular às linhas laterais em direcção a Sul onde tem a certeza de encontrar o seu colega W. Este ocupa o espaço previsivelmente vazio mas é antecipado pela acção defensiva de E. que intercepta o esférico e manda-o para bem longe da área de rigor! Erro de W. que se deixou antecipar numa jogada de golo previsível. [...]. »
Os jogadores, em caso de falhanço, poderiam justificar-se do seguinte modo:
«Há sempre alguns factores indetermináveis que operam durante o jogo e concorrem para a probabilidade do erro. Tenho de estar com mais atenção e, sobretudo, antes de entrar em campo, estudar bem o meu papel na concretização da configuração táctica da equipa! Muito obrigado!»
Quanto aos árbitro utilizariam por certo um modo idêntico:
«Eram previsíveis os erros. As configurações tácticas utilizadas pelas duas equipas, apontavam para uma probabilidade de grande penalidade superior a 0.5. Foram marcadas duas grandes penalidades a favor da equipa ofensiva devido a dois erros da equipa defensiva. Cumpri o meu papel. Preparei-me bem para este jogo!»
O treinador derrotado teria por certo de retirar uma conclusão mais ou menos parecida com esta:
«Hoje aquilo que, ainda antes do jogo, tinha um estatuto de hipótese teórica passou a ser uma lei: A Configuração Táctica Ofensiva com Resguardo Defensivo tem hipervalência sobre o Maciço Defensivo Empatativo. O futebol é uma ciência. E, como ciência, tem teorias que, por vezes, comportam erros. Aprendemos, hoje, a eliminar um desses erros!»
Finalmente os dirigentes. Quer no caso do dirigente da equipa derrotada quer no caso do da equipa vencedora, as respectivas declarações pautar-se-iam pela resignação, reconhecimento dos erros e aprendizagem com a derrota, no primeiro caso, e pela leve satisfação da supremacia táctica, mas sem ufania, no segundo caso.
Se o futebol fosse uma ciência, por certo que haveria uma convivência mais tolerante com o erro. As paixões submeter-se-iam à racionalidade e a explosão de alegria perante a espontaneidade do golo daria lugar a uma satisfação comedida perante um resultado previsível. É sabido como o espírito científico impregna os cientistas de virtudes impeditivas de qualquer vaidade, desonestidade, cinismo, melindre ou raiva.
Definitivamente, nada disto observamos no futebol. Bastariam aquelas duas máximas para afirmar a impossibilidade do futebol como ciência. Mas, não será de prosseguir em direcção a uma era futebolística matizada pelo esclarecimento racional? Pessoalmente, deleito-me não tanto com o futebol praticado como com os dizeres de jogadores, treinadores, professores, dirigentes e jornalistas. E, como afirmou um jogador (defesa) dos mais virtuosos com a bola e com as palavras, «quando assim é, estamos todos de parabéns!»